Narciso e a cegueira

Narciso e a cegueira


Sempre prezei muito minha beleza. E minha masculinidade. Bem no fundo do meu ser, “o outro” não existia. Muitas vezes “alguns” ousaram querer se fazer presente dentro de mim. Matei a todos.
Lembro-me bem de namorar gente bem feia, mas rica, para poder usufruir o bom e do melhor. Desde cremes a viagens, passando por artigos importados da Europa e América do Norte. Tudo para reforçar quem eu era: um homem belo.
Isto, até conhecer Steven. Steven era o tipo de homem que não se importava com minha beleza. Isto me irritava profundamente. Ele sempre me elogiava, mas não se apaixonava. Eu fazia promessas falsas de amor eterno, me vestia de Armani, me perfumava ou simplesmente me despia de tudo. Ele não mudava.
Ele me sorria todas às vezes, me beijava com violência e me devorava, mas não se apaixonava. Após cada encontro, me sentia mais frustrado. Será que não era doce o suficiente? Meu pau não era grande o suficiente? Minha bunda não era carnuda o suficiente? Meus lábios não vertiam mais mel?
Steven...
Lembro da última noite em que estivemos juntos. Nos sentamos um de frente para o outro naquele hotel chique, e ele falava muito sobre o quanto eu era belo, sobre minha inteligência, sobre meus modos, sobre a forma como eu falava. Jantamos. Após o jantar, ele me presenteou com um anel. Ouro branco. Meus olhos faiscaram. Disse que era um agradecimento aos dois anos juntos. Um sinal de amizade.
Nunca uma palavra doeu tanto. “Amizade”. Parecia um palavrão. Controlei-me.
Saímos de lá e fomos para casa dele. Seu quarto era todo decorado com espelhos. Eu já havia estado lá dezenas de vezes. E tínhamos dormido ali várias vezes.
Diferente das outras vezes, não houve sexo selvagem. Fomos até o banheiro, nos acariciamos, ensaboamos um ao outro, e ele me fez rir. Acho que esqueci de mim por um único instante na vida. Ele sorriu e me beijou enquanto deixávamos a água morna deslizar sobre nossos corpos. Nos secamos e fomos deitar.
Naquela noite, antes de adormecer entre beijos e abraços e enquanto seu corpo se colasse ao meu a noite toda, e pudesse ficar sentindo seu perfume natural que me inebriou, eu pensei no que significaria a vida toda com ele.
Pela manhã, fui desperto com um beijo. Bocejei, sorri e observei nossos corpos no espelho. Ou melhor, em todos os espelhos daquele quarto.
Ele trouxe o café da manhã e ficamos conversando sobre coisas que nunca havíamos falado antes. E, pela primeira vez, abri uma parte da minha vida que nunca havia dito a nenhum estranho. Coisas da minha infância, aspectos da minha personalidade. Ele ouvia tudo, muito atento, sem fazer piadas.
Mas o dia tem apenas 24 horas, me arrumei depressa de acordo com o que era possível na ocasião, e fiquei perfeito, como sempre. Ele me admirou, sorriu, me beijou longamente e me entregou um pacote. Uma sacola na realidade. E disse:
- Abra em casa.
Cheguei rápido no meu refúgio. Não demorei muito em ver qual era aquele presente. Notei as capas pretas de DVDS com etiquetas com datas e um bilhete que dizia: “Não posso mais. Sinto muito...”.
Escolhi a data mais antiga e coloquei para assistir. Era a nossa primeira transa. Steven mantinha um arquivo com todas as vezes que fizemos sexo em seu quarto.
Não esbocei reação. Assisti a tudo. E ainda observei nosso sono naquela noite. Não liguei para ele. Nem ele pra mim. Nunca mais.
Fui até o espelho. Observei-me. Pensei sobre a vida. Peguei um martelo na caixa de ferramentas. E o quebrei.
* * *
Para S., com o amor que me restou.

2 comentários:

  1. Paula Jácome disse...

    Ufa! Que abafamento...
    Que texto bom, que história interessante.
    Nunca tinha vindo até aqui.
    Parabéns! Adorei de verdade.  

  2. Paulo César Moreira disse...

    Obrigado, Paula! Volte sempre!